O Dia Mundial da Cultura Africana e dos Afrodescendentes, 24 de janeiro, foi estabelecido, em 2019, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) por ocasião da 40ª sessão na Conferência Geral, para homenagear as culturas do continente africano e as diásporas africanas em todo o mundo, visando reforçar e promover apreço, admiração e reverência à diversidade cultural e a criatividade humana.
Também nesse dia rememora-se o Lançamento da Carta para o Renascimento Cultural da África, elaborada por chefes de Estados e governos membros da União Africana (UA), durante a 6ª sessão da Conferência. Cabe ressaltar que a UA foi fundada em 2002, em substituição a Organização da Unidade Africana (1963), presente em todos os países africanos, com o objetivo de prevenir conflitos naquele continente, e com intuito de promover o desenvolvimento dos países, buscando acelerar o processo de integração na região.
A diversidade cultural da África se expressa nas diversas etnias, idiomas, tradições, religiões e contribuições culturais que são raízes presentes na cultura afro-brasileira (costumes, músicas, danças, culinária, expressões estéticas, corporais, plásticas e filosóficas, entre outros). Assim, esta data nos permite refletir, debater, valorizar as contribuições culturais africanas na formação da sociedade brasileira, e homenagear as produções artísticas, literárias e cinematográficas afro-brasileiras inspiradas nessa cultura rica, vasta e pujante.
Lembrando que “nossos passos vêm de longe...” Sintamo-nos representados por Cristina Soares, Juliana Segóvia, Lilia Guerra, Mila Rodrigues, Plínio Camillo, Robson Barbosa e Rozzi Brasil.
Cristina Soares, ilustradora, mestre em história, membra do Coletivo de Mulheres Negras - Herdeiras do Quariterê e autora do livro “Mulheres na História Africana em Mato Grosso”, destaca a importância da data: “é de extrema importância e marca o grande avanço em nossas lutas por direitos e igualdade. O continente africano foi ora invisibilizado, ora demonizado pelo discurso oficial (eurocêntrico) que não aceitava o protagonismo da população negra. Diante desta data comemorativa da cultura africana e dos afrodescendentes, vemos a necessidade de gritar aos quatro cantos: “Nós existimos. Nós reexistimos. Amamos quem somos. Somos protagonistas de nossa história”. Como mulher negra, afro-brasileira, me sinto orgulhosa em ver que nossas lutas não são vãs. Plantamos sementes por acreditar que vão germinar e que as próximas gerações vão colher os frutos.”
Cristina tem quadro semanal num programa de televisão onde dá dicas de leituras, foca em produções multiculturais e antirracistas. Ela menciona a importância de se produzir livros, músicas e filmes que sejam protagonizados e produzidos por afrodescentes evidenciando e valorizando a produção cultural e artística afro-brasileira. Utiliza o espaço aberto para alcançar, incentivar pessoas e enfatizar a necessidade de posicionar de forma cotidiana política e socialmente: “é importante lutarmos por um mundo melhor, mais justo, que as novas gerações conheçam a força que existe no continente africano, por isso não dá para ficarmos paradas, esperando que outras pessoas façam ou ocupem nosso lugar. Vejo a arte, a cultura, a escrita como uma grande arma de luta. A ciência, os conhecimentos que aprendemos de nossas mães negras, se tornam realidade possíveis para que enxerguemos beleza, riqueza em nossa ancestralidade. A responsabilidade de construir um mundo melhor pertence a nós”.
Juliana Segóvia é cineasta, arte educadora, graduada em Comunicação Social e mestre em Estudos de Cultura Contemporânea-UFMT, membra-fundadora do Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, renomeado em 2022 para Instituto Quariterê. Produtora de curta-metragem documental “A Velhice Ilumina o Vento”, “Benedita” e muitos outros. Jú Segóvia destaca o papel político do Instituto como um Aquilombamento, a importância da temática, do protagonismo negro e da seleção da equipe de produção: “Temos o objetivo de trazer à tona a discussão contemporânea dos aquilombamentos urbanos, que são reuniões de coletividades e lutas. Quilombo do Quariterê liderado por Tereza de Benguela, tinha essa composição: pessoas pretas, indígenas vivendo em coletividade, colaboração e cooperação. Num processo de resistência e de sobrevivência, mas em cooperação. Então, nós estamos nesse aquilombamento, temos esse posicionamento político de lutas, e lutas por políticas públicas (...). As produções cinematográficas são construídas e realizadas para que não sejam só focadas no protagonismo de pessoas negras. Também pensamos nos bastidores dessas equipes, que são majoritariamente compostas de pessoas negras, indígenas e por pessoas dos variados recortes de sexualidade e gêneros. Porque a nossa missão é contemplar a presença do protagonista, do profissional, do trabalhador que faz parte dos recortes minoritários.”
Jú Segóvia, de maneira convicta e serena, continua em suas ponderações essenciais: “A relevância é que a gente é um grupo que faz luta por políticas públicas afirmativas. É um grupo que luta pelo acesso à formação, através da idealização de projetos formativos, incentivando novos profissionais. Nós também somos um grupo que foca na realização e na produção audiovisual, e de cinema. É nesse recorte das produções voltadas para o cenário cinematográfico, daí entram as mostras de cinema negro de Mato Grosso, por exemplo, estamos indo para a sétima edição em 2024 e pela primeira vez com incentivo público, pois fomos contemplados com o edital, viver cultura”.
A cineasta fala das realizações e dos trabalhos anteriores mas acentua a necessidade dos investimentos públicos para a realização de projetos futuros: ”em 2023 nós circulamos fazendo exibição: na Casa das Pretas, em centros comunitários, escolas técnicas e municipais, e bairros periféricos como no Parque Geórgia. E vamos ampliar o projeto Cineclube Encruzilhada, pois fomos contemplados pelo edital municipal. Assim que acessarmos essa verba, vamos fazer uma circulação mais robusta por bairros periféricos e escolas da grande Cuiabá e Várzea Grande. É um projeto que a gente tem muito orgulho, muita felicidade por estar concretizando”.
Lilia Guerra, paulistana, servidora da área de saúde, escritora das obras: O Céu Para os Bastardos, Perifobia, Rua do Larguinho, Crônicas para colorir a cidade e Escrita pulsante, vibra a vida das margens, das bases, ilumina as experiências extraordinárias das mulheres da sua família materna. Lilia escreve sobre o que ouve, acolhe, observa e conhece nas ruas, ônibus, periferias, cozinhas e no serviço público de saúde. Atendendo os desejos e sonhos da mãe percorre o chamado da ancestralidade, seus sentidos caminham lado a lado com inúmeras outras mulheres negras afrodescendentes.
Com Lilia peroleiamos (sua escrita assemelha as conchas que produzem as raras pérolas), as várias camadas dos seus textos, nos deleitamos com suas inspirações e cenários. Ela explica: “Escrever é como conversar em pensamento com minha Avó. Como se ela estivesse ao meu lado, ainda. E pudesse compartilhar das minhas descobertas. Hoje sei que ela não tinha culpa, como pensava. Pelo aluguel atrasado, pela escassez. Pela ausência de estudo. Escrevo porque muita gente ainda se sente culpada. O que eu não pude contar pra Vó, procuro registrar nos escritos”. Com a voz serena e aveludada, reconecta-se ao que ouve dos grandes músicos e compositores do samba-canção, inspira-se nos fragmentos das múltiplas narrativas negras e recompõe esses sentimentos e emoções em suas criações literárias. Fazendo dos seus escritos obras que tornam as mulheres negras visíveis colocando-as ao nível das imortais, estão todas ascencionadas como nos itans.
Mila Rodrigues é escritora literária, entre outras obras, publicou em 2022 o livro “Corpo Diáspora”, pela editora Letramento, em parceria com Laísa Costa. Trata-se de um compilado de textos de duas mulheres afrolatinoamericanas – uma nascida em Cuiabá e outra em Salvador - cujos caminhos entrecruzam-se na abundante e gelada São Paulo. Ela afirma que a literatura: “é uma forma de intelectualidade, é particularmente importante disputar esse espaço sendo quem somos”. Ao citar a autora Miriam Santos, em Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contemporânea (2018) aponta: “ que empreender uma discussão sobre o papel da escritora negra enquanto intelectual contemporânea é sinalizar que esta construção chega à esfera pública como uma intervenção na realidade social; está se apresenta de forma assimétrica, mantendo e (re)produzindo divisões de gênero e étnico-raciais tão marcadas na nossa história brasileira”.
Mila faz reflexões do contexto das narrativas e escritas de mulheres negras, afrodescendentes e afro-latino-americanas e revela urgências e cita suas influências: “seja pelas ausências, seja pelo silenciamento de sua presença; seja pelas representações violentas e opressoras, seja pela potência que a mesma revela. De escritoras brasileiras – como Firmina dos Reis, Luciene Carvalho e Ryane Leão – a inúmeros outros pontos do globo, temos uma produção afrodescendente feminina profícua e que data de muito mais tempo do que se costuma conhecer”.
Plínio Camillo é escritor, mas se define como “escrevinhador”, ator, diretor teatral, educador social, palestrante, promove oficinas de escrita e roteiro e mantém um canal no Youtube intitulado "Notas de Escurecimento", onde entrevista escritores negros brasileiros, com temáticas e escrituras enegrecidas sob um foco antirracista. Ele destaca a importância do teatro, da literatura dos afros descendentes: “são meios, espaços de manifestação da nossa negritude, do ser negro no Brasil ontem hoje e temendo pelo amanhã. São instrumentos também que nos ligam e religam com os nossos antepassados que foram sequestrados nas Áfricas, não por sua força de trabalho, mas pela tecnologia que desenvolviam e os europeus não tinham. Essas soluções desses instrumentos não vieram em livros ou escritos, porém na pele, na musicalidade da língua, nas histórias dos deuses e orixás, na pintura e nos trançados de cabelos. Sim, essa até tem influência dos povos originais daqui e de outras culturas, porém tudo escurecida e enegrecida como tem que ser. Também tem o valor de salvação e da comunicação, de conversar com os que virão. Bora lá que as lutas não estão nem no fim”.
Robson Barbosa, natural de Itajaí-SC, tem uma página chamada Iustrablack desenvolveu seu trabalho em software de desenho (Photoshop e Procreate) há mais de 10 anos. O trabalho dele tem grande visibilidade, pois evidencia sua habilidade única de mesclar a beleza da arte clássica com o mundo digital. Sua técnica de óleo digital captura a profundidade e a riqueza da pintura tradicional, com um toque contemporâneo. Suas obras notáveis incluem capas de livros que transmitem mensagens poderosas e celebram a estética negra no Brasil, incluindo "O JESUS NEGRO" de Henrique Vieira; “MALES – Revolta dos escravizados na Bahia e seu legado” de Gilvan Ribeiro e “O nome dela é Luana” de Eberson Terra e Gustavo Nascimento.
Robson nos declarou que tem a função do Ilustrablack: “é um defensor apaixonado pela inclusão e igualdade racial, usando sua arte para inspirar e unir pessoas nas redes sociais”. E fala sobre dois dos seus trabalhos: “desenvolver a capa do livro e dar um rosto para Jesus Negro periférico no Brasil é algo muito simbólico e marcante para esse momento da vida”. Já a luta dos Males é a luta da população negra, muçulmana e adeptos de religiões de matriz africana por respeito, liberdade e dignidade no Brasil, assim encerra de forma quase heróica: “a capa foi desenvolvida com a intenção de dar forma e cor para a força desse povo que se planejou e executou um grito de basta! ”
Rozzi Brasil - estreou com diretora do curta metragem #Procuram-Se_Mulheres (2018), premiado em 2019, como Melhor Curta de Temática Social, com o troféu Rede Sina no Festival de Cinema e Vídeo de Santa Maria-SMVC, no Rio Grande do Sul, e com o troféu Calunga na categoria Melhor Edição de Som, na Mostra Competitiva de Curtas-Metragens Nacionais do Cinema, de Pernambuco. É cofundadora do movimento MUQ - Mulheres nas Quebradas do PACC/UFRJ que desenvolve o projeto #LivresLivros, voltado para a produção literária de mulheres periféricas, através das oficinas de leitura e escrita. A Mestre Quebradeira da Universidade das Quebradas Rozzi fala despretensiosamente do seu sonho: “para que elas coletivamente desabrochem suas potencialidades e narrativas, produzindo ao final do curso, um e-book, essa linda iniciativa além de acolher, ouvir, coleta histórias de mulheres incríveis e um celeiro fértil que fortalece mulheres com suas escritas potentes”. É autora do Livro Histórias da Cabrochinha (2023) sobre as diversas violências que mulheres negras sofrem desde a mais tenra infância, é coautora em seis antologias entre os anos de 2020 e 2022. É fotógrafa, designer, podcasts, apresentadora e compositora tendo formado a primeira parceria de samba-enredo só de mulheres numa escola de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, Samba das Guerreiras.
A importância de comemorar a cultura africana corrobora no desempenho do papel basilar no desenvolvimento harmônico, respeitoso dos membros de uma sociedade. É uma maneira de ajudar as pessoas desenvolverem e reconhecerem suas identidades, ampliar a formação individual, gerando pensamentos e conhecimentos, valores étnicos, morais, intelectuais, produzindo indivíduos que sejam capazes de conectar as outras pessoas. Axé Muntu!
*Gilda Portella, sacerdotisa de Umbanda, multiartista, historiadora/UFMT e mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea/UFMT.
Fonte Soraya Medeiros - Assessora de imprensa