Quem tem medo do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero? No momento em que o Brasil contabiliza mais de 1.400 feminicídios anuais e 196 estupros diários, surge uma proposta legislativa que, ao invés de fortalecer a proteção às mulheres, busca desmantelar um dos principais instrumentos de combate à discriminação de gênero no Poder Judiciário.
O Projeto de Lei nº 89/2023, de autoria da Deputada Chris Tonietto, que visa sustar o uso do "Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero", não é mera divergência técnica, mas representa um ataque frontal orquestrado por quem se revela como inimiga da luta das mulheres por igualdade e justiça. A pergunta é incômoda: a quem interessa enfraquecer os mecanismos de proteção às mulheres justamente quando os dados evidenciam a urgência de seu fortalecimento?
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo CNJ em 2021, não constitui inovação desarrazoada, mas materialização de compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro após a condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso "Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil". Márcia foi assassinada em 1998 por seu ex-companheiro, o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que se valeu da imunidade parlamentar para protelar o julgamento por mais de duas décadas.
A Corte concluiu que a investigação teve "caráter discriminatório por razão de gênero" e determinou a adoção de um protocolo nacional, medida prontamente cumprida pelo CNJ. A perspectiva de gênero no julgamento não implica favorecimento, mas ferramenta para reconhecer e neutralizar preconceitos inconscientes que historicamente permearam as decisões judiciais.
O projeto de Tonietto propõe a proibição do protocolo sob argumentos falaciosos de violação à imparcialidade, revelando profundo desconhecimento tanto dos objetivos do instrumento quanto da autonomia do Poder Judiciário. Além de tecnicamente ineficaz, já que tenta interferir em ato administrativo do Poder Judiciário, a medida demonstra perseguição infundada ao termo "gênero", conceito consolidado nas ciências sociais há décadas.
Os dados são alarmantes: em 76,6% dos registros de violências contra mulheres o agressor é masculino, 71,6% das violências ocorrem na residência, e as mulheres negras representam 68,2% das vítimas de homicídio feminino. A cada 24 horas, 13 mulheres sofrem violência e a cada 17 horas uma mulher é vítima de feminicídio.
Particularmente grave é a tentativa de apresentar o projeto como proteção às mulheres mediante criação de um suposto "protocolo humanista". Tal proposta configura apropriação da pauta feminina, utilizando linguagem supostamente inclusiva para mascarar objetivos regressivos promovidos por quem demonstra ser adversária da causa do combate à violência contra a mulher.
As violências sofridas por mulheres possuem características próprias, decorrentes de estruturas patriarcais milenares, que não podem ser enfrentadas por instrumentos genéricos. A resposta à pergunta feita no início é evidente: serve aos perpetuadores da violência de gênero, aos que se beneficiam da manutenção do status quo discriminatório e àqueles que veem na igualdade uma ameaça aos privilégios históricos.
A oposição ao protocolo revela estratégia de transformar o Legislativo em palanque para perseguições ideológicas, ignorando que o Brasil enfrenta problemas reais como desemprego, inflação, déficit habitacional, crise na saúde, na educação e na segurança de todos e principalmente das mulheres. O argumento de violação à imparcialidade judicial é falacioso, pois a verdadeira imparcialidade exige reconhecimento e superação de preconceitos inconscientes. A tentativa de interferência legislativa em ato do Poder Judiciário evidencia desconhecimento sobre separação de poderes, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.
Diante desses números dramáticos, o Brasil precisa de aliadas na luta contra a violência de gênero, não de detratoras que utilizem sua posição parlamentar para promover retrocessos. As mulheres brasileiras necessitam de representantes que compreendam a gravidade da situação e trabalhem para fortalecer os mecanismos de proteção existentes. Quem tem medo do protocolo? Aqueles que transformam o Legislativo em palanque para perseguições ideológicas, que preferem atacar instrumentos técnicos do Judiciário a enfrentar os problemas reais do país. A perspectiva de gênero na justiça veio para ficar, como exigência inafastável de um Estado Democrático de Direito comprometido com a dignidade humana de todas e todos.
*Thaís Brazil é advogada, professora de Direito, mestranda em Direito pela UFMT, atuante nas áreas de Direito das Famílias e Direitos Humanos, com experiência em casos de violência doméstica e na proteção de grupos vulneráveis.
Fonte: ZF Press